Até sábado passado, quem gosta de basquete e nasceu na década de 70 tinha apenas uma lembrança emocionante da seleção masculina: a vitória sobre os Estados Unidos na final do Pan de Indianapolis, em 1987.
Um dos grandes momentos esportivos da vida de muita gente.
No último sábado, em Mar del Plata, aconteceu algo que se assemelha em importância e comoção àquele domingo nos Estados Unidos.
A seleção brasileira ganhou, com todos os méritos possíveis, o direito de disputar os Jogos Olímpicos. A última vez foi em 1996.
A vitória sobre a República Dominicana se juntou ao triunfo contra a Argentina, três dias antes, como os principais episódios do que se pode chamar de resgate de uma seleção que passou 15 anos fora das Olimpíadas.
Uma seleção cuja história é honrosa demais para tamanha humilhação.
A conquista da vaga, creio, faz parte da lista de alegrias até de quem viu os títulos mundiais e medalhas olímpicas conquistados pelo Brasil.
Todas as pessoas envolvidas na preparação e na campanha do time comandado pelo técnico argentino Rubén Magnano merecem os parabéns pelo feito.
Magnano, lógico, foi o arquiteto e o líder dessa redenção. Algo que tem muito significado, sim, mas que apenas aumentou a lista de façanhas do treinador que levou a seleção argentina a ser o que é.
Os elogios também devem ser endereçados a todos os jogadores que estiveram em Mar del Plata. Mesmo que, como sempre é o caso, alguns tenham sido mais importantes.
Já falei sobre minha satisfação ao ver Marcelinho Huertas liderar o time dentro da quadra, com confiança e competência marcantes. Digo o mesmo sobre Guilherme Giovannoni, que acompanho desde as seleções de base.
Tiago Splitter, Rafael, Marquinhos… devem estar todos orgulhosos pelos dias históricos que nos proporcionaram.
Muito especial, também, ver Marcelinho Machado sair da quadra com a vaga olímpica conquistada, após uma ótima atuação individual.
Marcelinho tem 36 anos, é o jogador mais velho do time. Durante muito tempo, foi uma das referências de seleções que não tinham a organização coletiva que é a principal característica do time atual.
Marcelinho era o jogador mais talentoso, o que muitas vezes teve de tentar decidir sozinho. Era muito fácil cobrá-lo por falhar individualmente, e ignorar que as falhas coletivas eram muito mais graves.
Mérito dele aceitar um papel menos protagonista e oferecer suas habilidades a um time sólido. Vinte pontos no jogo da vaga, troféu pessoal.
Marcelinho Machado merece pisar numa quadra olímpica com a camisa da seleção brasileira.
O que nos leva à discussão do momento, sobre o merecimento – ou falta – de quem não foi jogar o pré-olímpico de Mar del Plata.
Importante dizer que é interessante ver o basquete envolvido nas conversas, depois de tanto tempo praticamente esquecido.
Mas o tom acalorado que tenta transformar a convocação do time num conflito entre heróis e vilões, bravos e covardes, mocinhos e bandidos é triste.
Triste e prejudicial.
A última coisa de que essa questão precisa é de histeria patriótica.
Por isso é preocupante que o presidente da Confederação Brasileira de Basquete, Carlos Nunes, tenha dito que acha que “só tem vaga para Anderson Varejão”.
Nunes frisou que deu tal declaração “como basqueteiro”, como se fosse razoável.
Ocorre que ele não é “um basqueteiro”. É presidente da CBB. Pode dizer o que bem entender sobre qualquer assunto, menos aqueles que exigem sua atuação como dirigente.
Além disso, a decisão sobre convocar – ou não – Nenê e Leandrinho não é dele (mais sobre isso adiante).
É muito fácil vilanizar os jogadores que tomaram as decisões profissionais de não atuar pela seleção brasileira.
É oportunista se utilizar de “questões patrióticas” para transformá-los em párias.
Veja, não defendo a decisão de não jogar. Defendo o direito de não jogar.
É evidente que tal posição deve ser explicada de forma honesta, transparente. Não podem restar dúvidas sobre os motivos. Jogadores e CBB devem evitar interpretações erradas.
Infelizmente, não é o que acontece.
No esporte profissional, a iniciativa de atender a uma convocação leva muitos aspectos em conta. Um deles, certamente um dos principais, é a valorização da carreira.
E em termos de valorização de carreira, a NBA é o estágio mais alto. É natural (o que não significa ser correto) que um jogador que ganha milhões de dólares na principal liga de basquete do mundo veja sua seleção nacional de uma outra maneira.
Esforço-me para ser claro: deveria ser assim? Provavelmente não. Mas certamente é.
Se você me acompanhou até aqui (obrigado), talvez queira perguntar: mas e o Dirk Novitzki, que sempre jogou pela Alemanha? E o Steve Nash, que sempre jogou pelo Canadá? E o Manu Ginóbili, que sempre jogou pela Argentina? E há muitos outros exemplos.
Pois bem.
Na hora de servir a seleção, alguns aspectos envolvem a relação entre jogadores e a confederação. Envolvem o trabalho que é – ou não é – feito para que o esporte se desenvolva no país e, no processo, desenvolva também a ligação de atletas com a seleção.
Tomemos o exemplo da Argentina. A seleção que o Brasil derrotou em Mar del Plata não atingiu o nível de excelência na última década por acaso. O caminho começou muito antes, com a formação de uma liga de clubes e o embrião de um projeto que tinha como objetivo final a construção de uma seleção forte.
Jogadores talentosos e promissores foram estimulados, ainda jovens, a deixar o país rumo a centros que oferecessem mais competitividade. Muitos foram jogar em equipes da segunda divisão das ligas da Espanha e da Itália. Ganharam experiência internacional como bônus, sempre com o compromisso de conviver com o grupo do qual faziam parte desde as categorias de base da seleção.
A geração que foi vice-campeã mundial em 2002 e campeã olímpica em 2004 foi formada assim, por gente como Rubén Magnano.
Quando vemos a Argentina jogar (ou festejar uma conquista como no domingo passado, em casa, contra o Brasil), percebemos o quanto esses jogadores gostam de estar ali. O quanto consideram importante estar ali.
É mais ou menos a crítica que se faz ao ar blasé da Seleção Brasileira de futebol, usando como exemplo o comprometimento que se vê nos jogadores uruguaios.
Nos dois casos, o que há por trás “do sentimento”, “da paixão”, “da responsabilidade” (enfim, de tudo que se cobra de quem não foi ao pré-olímpico), é estrutura, organização, seriedade e trabalho competente por parte dos dirigentes que comandam as associações.
Nada disso se vê no basquete brasileiro. Nada.
Seria muito saudável se as pessoas que hoje acusam jogadores de ser “desertores” cobrassem a CBB – com o mesmo tom apaixonado e “patriota” – por tudo que ela tem obrigação de fazer e não faz.
Mas é mais conveniente, e mais populista, perseguir os “fujões”.
Agora, de volta ao cerne da questão: levar ou não levar os caras para Londres?
Um ponto é claro. A decisão pertence ao técnico. Se a CBB contratou alguém como Rubén Magnano para dirigir a seleção, acredito que tenha sido para deixá-lo trabalhar.
Assim como acredito que ele, com tanta experiência, saberá o que fazer.
Arrisco-me a uma opinião (já dada na última Caixa-Postal). Talvez o melhor caminho seja uma decisão coletiva, obviamente com a participação do técnico.
Magnano pode reunir seu grupo, ou os líderes, e deixar clara sua opinião sobre o que fazer. Um técnico deve se posicionar, não pode apenas transferir essa responsabilidade.
Depois de dizer o que pensa, ele poderia colocar a questão ao grupo, como numa votação.
É lógico que os jogadores da seleção sabem por que Leandrinho e Nenê não foram à Argentina. Também é lógico que o grupo tem sensações bem definidas em relação aos dois. Acredito que essas sensações são diferentes num caso e no outro.
Dividindo a decisão com o grupo, Mangano lograria alguns objetivos: daria voz a quem foi “roer o osso”, manteria sua posição de comandante e conduziria a um consenso que é crucial.
Se a resposta for positiva (a um ou a ambos), seria uma garantia de manutenção do ambiente.
Se for negativa, se firmaria um compromisso entre técnico e jogadores para ir aos Jogos e encarar todas as dificuldades.
De qualquer forma, se Magnano decidir sozinho ou em grupo, o que vai pesar é mesmo o ambiente.
Nenê e Leandrinho podem significar a diferença entre apenas participar da Olimpíada de Londres ou disputá-la.
A questão deve ser tratada com frieza, sem paixão. Seja qual for a conclusão, o que deve prevalecer é o basquete do Brasil.
Olimpíada não é guerra. Seleção não é exército.